Por Wanderlay Anchieta


Este artigo foi publicado originalmente no portal Brasil 247.


Bem, caro leitor, terminei minha última coluna afirmando que aquele que chamam de “Mito”, e que nos apequena enquanto país, era um falso mito. Em termos de História (a vida real), e de política, isso é inegavelmente verdadeiro. Já se pensarmos na relação dos preceitos que regem as histórias (ficção), meu argumento não procede. Explico.

O mito é resultado de um conjunto de ações que começam no começo – numa causa que não tem causa; e terminam no fim, num efeito que não gera outro efeito. Quem assim os definiu foi Aristóteles, em sua Poética. É fundamental notar que tanto a causa inicial quanto o efeito final são definidos, arbitrariamente, pelos autores. Num arbítrio deveras não tão caprichoso. Citando o mestre estagirita novamente, poeta-se do herói somente aquilo que cabe poetar. Em outras palavras, traz-se à baila o que serve para fazer sua história funcionar de forma coerente. Portanto seria absolutamente irrelevante, e enfadonho, na história de Aquiles por exemplo, citar que o mesmo tem paixão por chocolates. Ou que Bentinho, de Casmurro, gostava de gravatas borboletas. Idem, comentei que existem diversos tipos de mito. Há aqueles monotemáticos, uma repetição da repetição – estereótipo geralmente relegado aos mitos do tipo ou tendência cômica. Já para os mitos trágicos, como Heathcliff de Ventos Uivantes, ou mesmo Batman – para citarmos um exemplo popular, existe um espaço muito maior de desenvolvimento. Em suma, os segundos se transformam posto que possuem muitos traços ou características, seja complementares ou, especialmente, contrastantes entre si. Já os mitos de tendência cômica como o saudoso Frank Debrin, de Corra que a polícia vem aí, pouco se expandem. Debrin termina seus filmes da mesma forma que começa, completamente perdido. Notaram a tenaz semelhança? Pois nosso “Mito” seria cômico, se ficcional. Em sua inaptidão, nos faria rir, desorientado, desnorteado, sem saber como proceder com aquilo que lhe ocorre. Sem evoluir, sem prestar atenção na progressão de sua própria história, pela qual passearia alheio. Reitero, se fosse ficcional, estaríamos gargalhando de nosso “Mito”. Infelizmente, não é o caso. Tal fato não quer dizer que nosso “Mito” é falso ou falho: isso, somente enquanto personagem de sua própria história sem noção. Pois os mitos cômicos, por sua repetição ad infinitum, acabam por ganhar força retórica – ou seja, de convencimento. Aqui, a terrível frase de Goebbels ganha coro: uma mentira dita cem vezes se torna verdade. Para ser sincero com vocês, caros leitores, a máxima do ministro da propaganda nazista não é absoluta. Ao menos, não completamente. Uma mentira recontada aos montes ganha força de convencimento, ou seja, poder retórico. Isso não a torna a verdade. Isso a torna uma verdade: torcida, limitada, fabricada à fórceps. O problema é que essa verdade de mau gosto, quando bem aplicada num “Mito” da vida real, seja o nosso ou aquele alemão do bigodinho, justamente por sua repetição, ganha a tal infeliz força de convencimento.

Desse modo, os mitos podem ser construídos a partir de um número ínfimo de informações que, reiteradas em demasia, nos fazem tender à concordância. Debrin nos faz rir porque, precisa e repetidamente, não entende seu papel. 

Nem todo personagem cômico é desprovido de noção. Urubulino, do brilhante Chico Anysio, tinha perfeita convicção de seu ponto de vista monotemático – o pessimismo marcado por seu bordão “mas pode piorar”. E o que é o bordão, senão exatamente essa repetição que citei anteriormente? Repetição imóvel, que nunca sai do lugar. De novo, lembraram de alguém?

Portanto me desdigo, sem me desdizer. Em partes nosso “Mito” é simplesmente falso, posto que fabricado a partir de uma curadoria de alguns poucos elementos específicos que se repetem e foram escolhidos a dedo para ecoar: como a noção de “homem simples” que usa caneta BIC, ou que come pão francês com leite condensado, ou ainda que fala gírias e usa palavreado popular, tal qual o povão.

Sua falsidade não significa, no entanto, em termos de construção narrativa, uma incapacidade. Ao revés, por ser delineado como mito cômico, em sua constante iteração, ele ganha força e passa a convencer. Nem que seja pelo cansaço.  

Dessa maneira, dói a esse singelo pesquisador afirmar que nosso “Mito” – somente em termos de narratologia estrita, que fique claro – é muito bem arquitetado. Propriamente por essa razão, foi capaz de seduzir tantas pessoas.

Não ser um falso mito não o torna memorável. Porém, ser um mito bem montado em moldes de tendência cômica lhe garante um certo conforto, assegurado pela coerência de seu papel. Coerência essa que, como temos testemunhado, se baseia na absoluta incoerência. Pois, a incoerência recorrente é, também, um modo de ser congruente (consigo mesmo, em sua própria história).   

É por essa razão que nosso “Mito” não se move. Apesar de tudo que lhe arrodeia, insiste em ser idêntico. Porque sabe que, se sair do papel que lhe foi legado, destruirá a potência do convencimento moldada pela repetição. E, com isso, seu público cativo se esvairá.

Esse ensaio foi pensado como parte de uma série quinzenal: os próximos lidarão, por exemplo com outros temas, tais quais: Como se desconstrói um mito qualquer? Para que servem os mitos? O poderes do Mito.

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