Não faria sentido que ambos são tipos de extremismo que merecem o mesmo repúdio? A resposta é não.
Por Rodrigo Quinam.
Este artigo foi publicado originalmente no portal Brasil 247.
Nazismo recentemente virou um tema quente no Brasil, com o podcaster Monark e o deputado Kim Kataguiri defendendo, em episódio do podcast Flow, a legitimidade de um partido nazista e da expressão do sentimento antisemita. Adrilles Jorge, um ex-BBB, engrossou o coro em programa da Jovem Pan. Não é a primeira vez que nazismo vira tema da semana no governo Bolsonaro – o ex-secretário de cultura Roberto Alvim, em 2020, fez referências a Joseph Goebbels, sendo exonerado pouco depois. Outros pequenos incidentes, vez ou outra, aparecem na imprensa. A ideologia de extrema-direita, em tempos de alt-right, saiu consideravelmente das margens nos últimos anos.
O gesto imediato de grande parte do país foi o repúdio, mas políticos e comentaristas conservadores reagiram de outra forma: afirmando que, sim, o nazismo é repulsivo, mas da mesma forma que o comunismo, e ambos têm que receber o mesmo tratamento. A reação é estranha – mesmo que alguém nutre de enorme desprezo pelo comunismo, ele ou nenhum comunista esteve envolvido no acidente. Partidos de extrema-esquerda têm uma existência tímida no Brasil, e ao contrário do nazismo, basicamente nenhum incidente foi registrado, salvo uma confusão entre o PCO e o PSDB, em manifestações de 2021. Partidos de (centro)esquerda maiores tem conciliações de classe e alianças ao liberalismo que são, inclusive, duramente criticadas por partidos como o PCB.
Então soa curioso e bizarro que a primeira reação a uma controvérsia envolvendo o nazismo seja o equivaler ao comunismo – soa como relativização, de um governo e aliados que foram celebrados e ligados a figuras neonazistas por algumas vezes durante o mandato. Mas qual, afinal, a diferença do nazismo e do comunismo? Um é um movimento de extrema-direita, e outro de extrema-esquerda. Não faria sentido que ambos são tipos de extremismo que merecem o mesmo repúdio? A resposta é não, que existem diferenças de enorme magnitude entre as duas ideologias – diferenças que mesmo cientistas sociais e historiadores críticos do comunismo reconhecem. Este texto não tem como objetivo defender virtudes do comunismo, e também não criticá-lo. Ele é feito para simpatizantes, neutros ou duros críticos. Para pessoas de esquerda ou direita, o que escrevo a seguir não é posicionamento meu, mas uma tentativa de boa fé de explicar a diferença.
Nazismo: de direita, pautado em exterminio racial
Em poucas palavras, a diferença das ideologias é que apenas o nazismo defende – e tem como sua ideia principal – o genocídio de todas as raças não enquadradas na “raça ariana”. O nazismo é baseado em conceitos pseudocientíficos que apontam uma ideia de pureza racial, onde seus arianos seriam uma “raça mestre”, de sangue puro, com direito de exterminar raças “inferiores”. Seu grande objetivo seria conquistar seu “Lebensraum” (“espaço vital”), onde uma utopia de eugenia racial seria alcançada. Seu plano de extermínio total da população judaica foi chamado de “Solução Final”, colocado em pauta no Holocausto, onde também foram exterminados sistematicamente eslavos, comunistas, povos ciganos, homossexuais, negros, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais e outras minorias étnicas. A exemplo de uma declaração do presidente em 2019, o nazismo foi acusado de ser uma ideologia de esquerda, muito graças a seu nome ser traduzido para “Nacional Socialista”. Outra concepção errada, ela ignora que a bizarra denominação não aponta nenhum vínculo com o socialismo – o ênfase é no “nacional”, apontando uma ideologia ultranacionalista, um traço conservador.
A desonestidade intelectual dessas afirmações fica descarada em uma breve consulta a um dos primeiros atos do Partido Nazista no poder: justamente perseguir socialistas, junto com qualquer grupo de centro-esquerda até extrema-esquerda que atuava na Alemanha. Hitler perseguiu, enviou para campos de concentração e matou de social-democratas mais moderados até bolcheviques e marxistas. A Noite das Facas Longas, expurgo que ocorreu em 1934, perseguiu inclusive alas internas do Partido Nazista que tivessem qualquer inclinação a esquerda.
Já a direita pode ser encontrada em demasia no nazismo. Se o partido perseguiu a esquerda quando chegou no poder, a direita… bem, o Partido Nazista só chegou ao poder devido a alianças traçadas por Hitler com conservadores e capitalistas alemães. O empresário conservador Alfred Hugenberg, do Partido Popular Nacional Alemão (em alemão, DNVP), foi instrumental para a ascensão de Hitler ao poder, esperando usar o füher como “ferramenta” contra a esquerda. Hugenberg chegou a integrar o governo nazista – o site da fundação The Holocaust Explained explica em detalhes as alianças entre nazistas e capitalistas/conservadores/direita.
No mais, nazistas eram recheados de traços associados a direita: o forte cristianismo (ressignificado, afirmando que Jesus era um ariano, e não um judeu), o já mencionado ultra nacionalismo, a forte estrutura patriarcal da sociedade, a militarização, o elitismo e oposição a luta de classes, o anti-internacionalismo, e a própria perseguição do Holocausto sendo focada em figuras não-normativas da sociedade alemã.
O texto poderia terminar aqui, uma vez que o comunismo não compartilha nenhum desses traços acima. Mas falemos agora dele.
A difícil definição do Comunismo
Ao contrário do nazismo, uma ideologia formada e colocada em prática especificamente em um momento histórico da Alemanha, comunismo é um conceito complexo que foi tentado a ser implementado em diferentes lugares, de diferentes formas, sob diferentes resultados. O Manifesto Comunista, publicado por Karl Marx em 1848, é um ancestral essencial, mas seu desenvolvimento vem em diversas vertentes, geralmente pautada no desenvolvimento que cada líder político que tentou implantar a ideia: marxismo, leninismo, marx-leninismo, trotskismo, maoismo, castroismo, de leonismo, etc. Teóricos debatem se o comunismo, como descrito por Marx, foi sequer colocado em prática – um estágio final propriedade privada, moeda, classe e dinheiro seriam abolidos. Estados como a União Soviética, Cuba e a China já foram associados a uma espécie de capitalismo de Estado, distantes do que seria o comunismo real, com alguns críticos sendo os próprios comunistas de outras vertentes. O estágio transicional para o comunismo seria o socialismo, onde o proletariado seria dono dos meios de produção, eliminando a desigualdade social e colocando em jogo a frase mais famosa de Marx: “Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”. Mas na prática, socialismo tem se tornado um termo vago, com até sociais democratas estadunidenses como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio Cortez o adotando – geralmente ao lado da palavra “democratic”, um “democratic socialism” para não assustar tanto os americanos.
O país do “medo vermelho” ter sua própria ideia de “socialismo” mostra o quão vaga tem se tornado sua definição nos últimos anos.
Similar a “Onda Rosa”, que nos anos 2000 elegeu líderes de esquerda na América Latina, socialismo tem sido usado para se referir a políticos que meramente defendem programas sociais, investimentos em saúde e educação públicas e outras reformas populares, conquistadas através de diálogos com setores burgueses, da participação na política tradicional e da tentativa de conciliação de classes – o que talvez seria melhor definido como uma social-democracia – desprezada por comunistas que pedem táticas mais revolucionárias. O “Medo Vermelho”, paranoia anti-comunista experienciada pelo mundo sob a sombra dos EUA, durante a Guerra Fria, tornou ainda mais generosa a definição: até integrantes de sindicatos, que meramente reivindicavam direitos e salários, sem necessariamente ter algum contato com o marxismo, foram enquadrados como comunistas. Bolsonaristas, sem pudor, usam o termo para atacar qualquer oponente; até a Globo, inacreditavelmente, já foi vítima. Por vezes, no Brasil atual, qualquer projeto minimamente humanitário é denunciado por comunista.
Tudo isso é uma simplificação – há estudiosos mais adequados que eu para explicar as tantas nuances destas ideologias de esquerda, mas o ponto já foi feito. Em todas essas vertentes, nenhum tipo de supremacia racial, eugenia ou de apologia a genocídio é citado. Esses pensamentos, quando falam em pegar as armas para fazer a revolução, podem defender ação violenta, mas em momento nenhum defendem as mazelas que tornaram o nazismo uma unanimidade como maldade absoluta entre basicamente todos os estudiosos.
Perdas de vida humana de fato ocorreram no comunismo, mas foram mortes de inimigos políticos, algumas travadas em momento de guerra, outras consequência da precariedade de alguns desses países e outras, de fato, repressões violentas de líderes autoritários de extrema-esquerda. Nenhuma foi causada por motivações de extermínio racial sistemático como o nazismo.
Mortes ocorridas em regimes autodenominados comunistas não estavam previstas de forma alguma de acordo com a teoria marxista. Mortes do Holocausto estavam não apenas previstas, mas eram o grande objetivo da ideologia nazista. Cada judeu assassinado era um passo a ser comemorado na ascensão nazista; cada morte em estado comunista vinha em momento de transtorno civil, sob o argumento da revolução. Não há equivalência.
Mortes e culpabilidade
Muito debate acontece acerca das mortes em massa ocorridas em estados comunistas, com argumentos dos dois lados. O Holodomor, grande fome ocorrida na Ucrânia entre 1932-1933, tem sido um dos grandes argumentos conservadores para tentar encontrar alguma equivalência com o Holocausto. O status do episódio como um genocídio está em aberto: defensores apontam uma intencionalidade de Stalin em combater inimigos políticos, os opositores falam de uma falha na distribuição de recursos, apontando as relações de nacionalistas ucranianos com o nazismo como possível fabricação de um mito. A história é violenta, e situações assim serão encontradas por ela – também no capitalismo. O então primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, é igualmente acusado de orquestrar uma grande fome em Bengala, na Índia Britânica, em 1943, onde cerca de 4 milhões de indianos teriam morrido. Defensores do não-genocidio apontam incompetência de Churchill em lidar com a situação em período de guerra, enquanto acusadores apontam intencionalidade – inclusive autores e políticos indianos que qualificam o inglês como genocida, além de ativistas na própria Inglaterra. O histórico de intervenções internacionais dos Estados Unidos também abre espaço para denúncias de violência e massacres.
Do uso da arma química Agente Laranja na Guerra do Vietnã até os ataques mais recentes com drones no Iêmen, o enquadramento dos EUA em acusações de crimes de guerra tem sido discutido. Países como o Iraque, invadido pelos EUA sob falsas evidências de armas de destruição em massa, foram fortemente destruídos. A lista é extensa com Síria, Afeganistão, Somália, Iugoslávia, Iran, Iraque (de novo), Cambodia, Panamá, entre outros, também sofrendo com intervenções. Críticos apontam que a motivação econômica – especialmente petróleo – dessas guerras também aumenta a banalidade das vidas perdidas e a imoralidade dos ataques. E toda essa história girando apenas nos meados do Séc XX – voltando um pouco, a lógica racial por trás do genocídio indigena e a escravidão talvez se aproximem mais ideologicamente do nazismo do que qualquer outra ideologia contemporânea. Mas no mundo pós-guerra, tudo é debatível, com pesquisadores disputando o legado do comunismo, a responsabilidade de países comunistas em mortes, a possibilidade do comunismo dar certo na prática; e o mesmo sendo feito com países capitalistas.
Existem pesquisadores dos dois lados, e a influência política é difícil de ser separada nesta busca pela verdade. Os fantasmas da Guerra Fria seguem fortes, e comunismo e capitalismo seguem temas de debates emotivos e acirrados. O que não é debatível é o nazismo. O nazismo é um dos raros consensos acadêmicos, algo que não pode ser relativizado como mera tática desonesta para contar vantagem na discussão acima. O nazismo não se equivale a mesmo os piores momentos do comunismo – e você pode desprezar, repudiar estes momentos, e mesmo acreditar que o comunismo nunca vai funcionar. Mas equivaler os dois é um obscurantismo irracional que acaba por favorecer o nazismo – justamente ao normalizá-lo.
A fascinating discussion is definitely worth comment. I do think that you ought to publish more about this topic, it may not be a taboo subject but typically people dont speak about such issues. To the next! Many thanks!!
Keep onn working, great job!